
Doutor Corsino Tolentino
A memória de Aristides Maria Pereira, Primeiro Presidente da República de Cabo Verde, merece mais reconhecimento do que tem hoje. Para isso, há que separar o homem do regime, o que equivale a dizer que o povo de Cabo Verde precisa focalizar mais na pessoa, não aqui e agora, mas no seu contexto. Aliás, Andrew Marr, autor da História do Mundo (2014)[1] afirma a este respeito que “uma vez que vivemos numa cultura democrática um tanto histérica, que ladra ruidosamente acerca da igualdade para se esquivar a falar dos enormes fossos de riqueza e poder” para mais à frente acrescentar que “nenhum dos grandes deixa de estar firmemente inserido nas suas sociedades ou épocas, o que lhes confere uma gama limitada de ações e pensamentos possíveis”. Seja como for, este texto é de resgate e divulgação. Ele é uma construção livre e informal, de reflexões sobre as influências que a formação da personalidade de Aristides Maria Pereira recebeu. Tenho por certo que a herança que por sua vez nos deixou é uma questão essencial na educação das gerações presentes e futuras. O filósofo espanhol José Ortega y Gasset não podia ser mais justo ao afirmar que o ensaio biográfico é uma “ciência sem prova explícita”, para acrescentar que “eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo a mim”[2]. A História das comunidades locais e também das nacionais é feita de gente e de memórias. As linhas seguintes partem da objetividade dos fatos para alcançar a ética das memórias. O meu objetivo é argumentar a necessidade de resgatar e ampliar a memória do Primeiro Presidente da República de Cabo Verde[3].
O Homem e as Circunstâncias
O Primeiro Presidente da República de Cabo Verde foi a ilustração do que Fernando Pessoa, a este propósito, tal como o seu contemporâneo Ortega y Gasset, pretendiam com a expressão “o antipatriota é uma besta”[4]. Estas referências servem para sublinhar o papel crucial que o biografado teve na luta pela independência da Guiné, de Cabo Verde e de África, na afirmação de um estilo cabo-verdiano de ser Presidente. Aristides Maria Pereira viveu 88 anos, de 1923 a 2011. Parece não haver dúvidas de que o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) atuou entre 1960 e 1980. O ano de 1960 é o da famosa conferência de imprensa de Londres, durante a qual, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral, apresentou pela primeira vez os estatutos do PAIGC. No ano de 1980, Nino Vieira deu o golpe de Partido e Estado na Guiné-Bissau, o qual pôs fim ao projeto binacional da Guiné e Cabo Verde. Depois de servir as duas terras na qualidade de segunda personalidade do movimento de libertação, Aristides Maria Pereira foi o Secretário-Geral do PAIGC entre 1973, ano da morte de Amílcar Cabral, e 1980, o ano do golpe. Com a proclamação da Independência de Cabo Verde, foi seu Presidente, de 1975 a 1991.
Este texto contextualiza a ação de Aristides Maria Pereira antes de avaliar os seus feitos. Para isso tomarei 4 obras como referências. Duas são livros-entrevista a Aristides Maria Pereira, que é o narrador: O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países [5] e Nossa História, Minha Vida, de Leopoldo Amado e José Vicente Lopes, respetivamente. São narrativas complementares e de grande valor histórico. Apesar de não ter sido lida nem validada pelo narrador, Nossa História, Minha Vida é um contributo precioso para o conhecimento da História contemporânea de Cabo Verde e da parte que nela tomou o Primeiro Presidente da República. A terceira obra corresponde à tese de doutoramento do português José Filipe Pinto, publicada no livro Do Império Colonial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Continuidades e Descontinuidades[6]. A quarta, Amílcar Cabral, Um Outro Olhar[7] é da autoria do jornalista Daniel dos Santos. Mérito comum destas obras é os autores, cada um à sua maneira, tentarem apreender o sujeito no contexto da luta pela transformação da vida.
Da Ilha de Boa Vista a Bafatá
Aristides Maria Pereira nasceu em 1923, na povoação de Fundo das Figueiras, Ilha de Boa Vista. Quando deixou Fundo das Figueiras pela primeira vez, para a vila de Sal-Rei, capital da ilha, e depois para Mindelo, São Vicente, onde se preparou e fez o segundo ciclo do liceu, se iniciou na academia Cultivar e vivenciou uma das piores secas e a consequente exportação de cabo-verdianos para as colónias de São Tomé e Príncipe e de Angola. Na cidade da Praia, foi agente comercial. A educação e a formação foram as motivações principais dessas deambulações pelas ilhas, primeiro, e pelo mundo, mais tarde. Em 1948, com 25 anos de idade, emigrou para a Guiné Portuguesa. Fixou-se em Bafatá como radiotelegrafista. Só haveria de regressar da Guiné-Bissau, 27 anos depois, em Fevereiro de 1975.
Na Foto: Aristides Pereira atrás de Amílcar Cabral
Antes de emigrar para a Guiné, Aristides Maria Pereira fez uma experiência religiosa, social e familiar que o havia de marcar para toda a vida. Era o número 12 de uma descendência de 13 filhas e filhos. O pai era um camponês de São Miguel, Ilha de Santiago, ordenado padre no seminário-liceu de São Nicolau e colocado na Boa Vista como pároco. Era uma espécie de estrela a brilhar nos domínios da pedagogia, da música e da ética. Além de educador, o padre Porfírio Pereira Tavares terá sido chefe de uma família numerosa. Vivia com a D. Maria das Neves e com os 13 filhos, em harmonia e com aparente consentimento da comunidade insular. A austeridade, o traje negro e o porte atlético, combinavam com o alto nível de conhecimento demonstrado através da homilia, da catequese e da formação musical.
Tudo isso despertava na população um misto de respeito e cumplicidade. Os traços que conservou da educação rigorosa que recebeu dos pais garantiram a Aristides Maria Pereira um certo ascendente sobre os seus camaradas de partido e um sentido de honorabilidade na nação cabo-verdiana. A casa familiar na povoação de Fundo das Figueiras e algum tempo na vila de Sal-Rei foram o ambiente e as circunstâncias que mais contribuíram para a formação da sua personalidade. Discreto, sempre pareceu saber que a religião é uma questão pessoal e privada. A base foi católica e humanística. Nos anos 30 terão aparecido na Ilha de Boa Vista uns deportados da metrópole que despertaram a curiosidade da família Pereira Tavares. O perfil físico, moral e estético de Aristides Maria Pereira era de tal maneira acentuado que terá suscitado o estranho pensamento de que “nasceu para ser Presidente”. Se Amílcar Cabral teria tido este pensamento, não sei, nem é provável. Contudo, o que julgo saber é que o catolicismo ajustado do primeiro formou com o humanismo marxista do segundo sólida parelha. É bom recordar que a nação cabo-verdiana assentou no nada e cresceu até hoje, a partir dos eixos da Europa e da África, na encruzilhada do mundo, a partir do século XV. A verdade histórica manda dizer que assim foi. Mais, no plano da racionalidade e das relações internacionais, a Política, a Diplomacia e o Tempo optaram pela colocação de Cabo Verde na região africana, decisão-garantia de viabilidade na dignidade.
Entre a Morte do Pai e o 25 de Abril de 1974
Passaram mais 27 anos. O pai, Porfírio Pereira Tavares, faleceu em 1949 na Ilha de São Vicente, com 81 anos. O que aconteceu de relevante para Aristides Maria Pereira nesse segundo quarto de século de sua existência? No mesmo ano, passou de Bafatá para Bolama. Em 1953, nasceu-lhe o primeiro filho, o Eugénio. Em 1954, conspira com Amílcar Cabral, Fernando Fortes e outros nacionalistas para fundar, mais tarde, o PAIGC. Em 1959, casa por procuração com Carlina Fortes e assiste, em Bissau, ao massacre de Pidjiguiti. Em 1960, vai a Londres onde o PAIGC é apresentado à opinião pública internacional e instala-se em Conacri, que acabou por ser a capital do principal santuário nacional do seu partido. Em 1961, nasceu a primeira filha do casal, Dulce Irene, que morreu pouco depois. Conheceu Indira Gandhi, em Nova Deli. Em 1962, nasceu em Dakar, a filha de ambos, Estela Maria. Em 1963, participa em Dakar na reunião de quadros, assim como no início da luta armada. Em 1964, nasceu em Rabat, Marrocos, a filha Manuela, e, em Cassacá, ele participa no I Congresso, que é o ponto de viragem na organização e comando do PAIGC. É também o ano do primeiro encontro de Che Guevara e Amílcar Cabral, que teve como consequência um novo relacionamento com Cuba revolucionária. Em 1969, morreu-lhe a mãe Maria das Neves. Em 1970, Alpoim Calvão invade Conacri e a sede do PAIGC. Salva-se por um triz. Em 1971, ele integra, com Amílcar Cabral e Luís Cabral, a Comissão Permanente do PAIGC. Ocupa-se dos assuntos externos e da segurança. Em 1973, aquando da morte de Amílcar Cabral, é sequestrado pelos assassinos do líder. Neste mesmo ano, em Madina do Boé, é eleito Secretário-Geral pelo II Congresso do PAIGC. Em 1974, cai em Portugal o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar, e faz-se o Acordo com o novo Governo português sobre a Independência de Cabo Verde. Em 30 de Dezembro, toma posse o Governo de Transição de Cabo Verde chefiado por Vicente Almeida d’Eça.
De número dois a líder do PAIGC
Foi como número dois, que Aristides Maria Pereira mais fez pelo PAIGC e pela libertação dos dois países. Efetivamente, quando pensamos nesses tempos com genuína vontade de compreender, a admiração toma conta de nós. Independentemente das polémicas sobre a data da criação e do conhecimento público do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, parece natural que a conspiração tenha começado na primeira metade dos anos 50. A historiografia dos movimentos de libertação nacional nas antigas colónias portuguesas o confirma.
Membro da Comissão Permanente em 1970, Aristides Maria Pereira tem a responsabilidade específica pela segurança e os assuntos externos. Ora, enquanto número dois e alter-ego de Amílcar Cabral, como afirmou Basil Davidson, respondia pelo funcionamento do partido no dia-a-dia e, por incumbência deste, cabiam-lhe os assuntos externos que, descodificados, significavam nada mais do que mercadorias, dinheiro, armazéns do povo, zonas libertadas, fronteiras incertas entre a dura realidade e o futuro.
Mas, paremos um pouco para pensar no que a segurança e os assuntos externos podiam significar nesse contexto da transformação da vida na Guiné-Bissau e de esperança imensa para Cabo Verde. O lado mais complexo da segurança era a espionagem, a qual era utilizada tanto pelo nosso movimento-partido como pelos governadores da Guiné Portuguesa, principalmente António de Spínola (1968-1973). Por outro lado, houve camaradas que passaram pelo menos 10 anos sem salários (1963-1973), num mundo entre o mito e o sacrifício. Condenar é fácil, mas hoje perguntamos qual era a fibra necessária e quantos tiveram a formação teórica e moral para aguentar tal situação? Sei que é lindo ouvir e contar histórias de um mundo em construção. Porém, eu vos confesso que é muito difícil vivenciá-lo quotidianamente.
Foi nesse tempo e ambiente de extrema exigência moral e material que Aristides Maria Pereira exerceu o cargo de número dois do PAIGC. Formalmente (1960-1973), desempenhou esse cargo fundamental. Sabendo que o dia-a-dia ganhava sentido a partir do mundo inexistente, isto é, das transformações políticas, económicas e sociais sonhadas para a Guiné e Cabo Verde, era possível exigir mais de quem sempre fora o número dois do partido, e depois seu SG, cargo que exerceu entre 1973 e 1980?
Secretário-Geral do PAIGC
Amílcar Cabral foi vítima mortal da unidade, também principal responsável pela libertação da Guiné, geradora da soberania para Cabo Verde na paz, imperfeita como toda a ação humana, mas que não houve tiros em Cabo Verde é verdade. Promover o Estado insular e soberano de Cabo Verde foi obra. Em 22 de Julho de 1973, em Madina do Boé, Aristides Maria Pereira foi eleito SG pelo II Congresso. É um SG convalescente de um partido doente. Duas provas: a crise tornada evidente pelas circunstâncias da morte de Amílcar Cabral e a circulação desafiante, indisfarçada e não oficial, da candidatura de Nino Vieira, proposta por Fidélis Almada. O desempenho do cargo de SG vai até 1980.
União Pessoal Quase Impossível
De 1975 a 1980, assistimos à uma união pessoal quase impossível entre ser SG do PAIGC e PR da República de Cabo Verde. Hoje o afirmo, depois de verificar que, contrariamente àquilo que já pensei, certas utopias não estão de verdade ao nosso alcance. No caso de Aristides Maria Pereira, o projeto de unidade foi bom enquanto durou. Passou o tempo em que era legítimo pensar que podíamos de repente mudar o mundo. Continuamos a poder mudá-lo só até certo ponto e quando a conclusão é uma impossibilidade, procuramos alternativas. Para já me parece que uma boa alternativa seria as fundações e associações guineenses, cabo-verdianas e de outras terras promoverem uma reflexão internacional, sem ressentimentos[8], para avaliar o contributo dos movimentos de libertação nacional de ambos os países para eles próprios, para a região africana e o mundo. Por mim, a luta de libertação nacional fez o que pôde fazer e, em geral, fez bem. Cumprimos o programa mínimo, ou seja, a independência da Guiné e de Cabo Verde, baseado no princípio de unidade e luta. Não compensa cada um dos países preocupar-se com o cumprimento do programa maior porque falhou a união dos dois. Se falhou, viva a melhor cooperação possível entre os dois territórios soberanos.
Chefe de Estado de Cabo Verde I
O primeiro mandato do Chefe de Estado corresponde ao período de 1975 a 1980. Tinha 52 anos, quando foi eleito Presidente e 67 quando deixou a política partidária. É durante esse tempo que Aristides Maria Pereira molda o perfil do Chefe de Estado cabo-verdiano. E fê-lo bem. Firme e modesto, sempre lembrava que, como dizem seus conterrâneos, responsabilidade tem sete sílabas. E será de acrescentar algumas quando se trata de falar em nome da Nação? Na verdade, quem viu este Cabo Verde aquando da independência e o vê hoje avaliará a diferença que nos separa do futuro. Efetivamente, os objetivos da presidência de Aristides Maria Pereira eram, fundamentalmente: criar um Estado ao serviço das populações de todas as ilhas; projetar a imagem de um Estado credível e solidário nas relações internacionais; a população de Cabo Verde devia interiorizar como marca, a honorabilidade. Cumpriu como pôde. Distante e frio? Talvez, mas essa a maneira que ele encontrou de honrar a função.
Com base no Acordo concluído em Lisboa entre o PAIGC, de que era SG, e o governo português saído do 25 de Abril de 1974, fixa 5 de Julho de 1975 para a independência de Cabo Verde. As eleições para a Assembleia Constituinte tiveram lugar no dia 30 de Junho. Aristides Maria Pereira foi eleito deputado à Assembleia Nacional Popular (ANP), ficando elegível para Presidente da República, pelos seus pares. Tinha 52 anos. No dia 7 de Julho, na Ilha de São Vicente, apresenta o I Governo de Cabo Verde encabeçado por Pedro Pires, que o acompanhará na longa marcha até 1991. Creio não serem poucos os que esperam as memórias escritas ou autorizadas pelo Comandante Pedro Pires. No decurso do primeiro mandato, orientou a organização das instituições básicas do país e procurou do estrangeiro o apoio máximo. Como contrapartida oferece o que tem, a credibilidade e a não-violência. Por outro lado, ultrapassa como sabe e pode as crises internas no partido e no país (PAIGC e São Vicente, 1977). No plano externo, desenvolve uma intensa atividade diplomática visando a afirmação do Estado de palavra e a procura de recursos. Vai a Argélia ainda em 1975, faz uma Visita de Estado a Portugal, a Angola e a São Tomé e Príncipe (1979). Recebe na Praia ou na ilha do Sal, os Chefes de Estado da Finlândia, Uhro Kekonnem (1976); do Senegal, Leopold Sedar Senghor (1977); da Guiné-Conacri, Sekou Touré (1978); da Libéria, William Tolbert (1978); de Espanha, Juan Carlos I (1978); da Nigéria, Olusungu Obasanjo (1979); de Angola, José Eduardo dos Santos e de Portugal, Ramalho Eanes (1980). Simboliza a grande dignidade do Estado soberano de Cabo Verde.
Chefe de Estado II
Os anos de 1981-1985 correspondem ao segundo mandato do Chefe de Estado, o último em que também é SG do partido binacional. Internamente, aquele período ficou manchado pelo incidente da reforma agrária em Santo Antão (1981). As instituições políticas não mostram grandes novidades. O PR é reconduzido, o Primeiro-Ministro também, assim como o Presidente do ANP e a maior parte dos membros do Governo. Contudo, a 20 de Janeiro de 1981 é proclamado o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), que simboliza, na sua designação, a fidelidade à África e aos princípios económicos, sociais, culturais e políticos que inspiraram o PAIGC. Em 1 de Setembro de 1981, por iniciativa do sistema das Nações Unidas, Aristides Maria Pereira discursa na sede da UNESCO em Paris, em nome dos mais de 50 Países Menos Avançados (PMA). Os cinco países africanos de língua portuguesa (PALOP) reúnem-se na Praia, assim como os Estados-Membros do Comité de Luta Contra a Seca no Sahel (CILSS). Cabo Verde participa na Cimeira dos Chefes de Estado dos Países Não-Alinhados. O II mandato de Aristides Maria Pereira foi marcado pela ação externa a favor do desanuviamento na África Austral, principalmente por causa do apartheid na África do Sul e da guerra civil em Angola. Por isso, encontrou-se com os Chefes de Estado da sub-região de África Austral e de outros Estados influentes, tais como os EUA de George Bush (pai) e Ronald Reagan ou João Paulo II, da Santa Sé. Em 1984, por causa dessa presença nas zonas de conflito, mormente na África Austral, Aristides Maria Pereira foi mencionado por alguns jornais como possível prémio Nobel da Paz, que acabou por ser entregue ao seu companheiro de causa Desmond Tutu, da África do Sul.
Chefe de Estado III
O terceiro mandato de Aristides Maria Pereira na chefia do Estado decorre de 1986 a 1991. Termina com o fim da sua atividade pública. O ano de 1986 é memorável, registando como fato mais relevante o cinquentenário do movimento Claridoso, durante o qual o Chefe de Estado afirma que “Claridade significou trazer ao povo de Cabo Verde a consciência da sua História – o sopro vital da Nação”. Esta afirmação procurava resolver as querelas existentes entre os diversos movimentos independentistas cabo-verdianos, especialmente, entre os vindos do mato, da Guiné-Bissau, os grupos da luta clandestina nas ilhas e os vindos de Lisboa. Outros fatos marcantes desse tempo foram a nomeação do promissor Renato Cardoso como Secretário de Estado da Administração Pública (1986), as visitas do recém-eleito Presidente José Sarney, acompanhado do famoso Jorge Amado, autor dos Subterrâneos da Liberdade, de Oliver Tambo, do ANC, Yasser Arafat, da Palestina, de José Eduardo dos Santos, de Angola e Mário Soares, de Portugal. Começou 1987 com uma manifestação de descontentamento na Ilha de São Vicente e continuou o cumprimento da agenda oficial recebendo a visita de Quett Masire, do Botsuana. Em 1988, os Chefes de Estado da Nigéria e da Libéria visitam o sage da Praia. Mas, 1988 é mais conhecido como o ano da oportunidade política perdida por Cabo Verde. O III Congresso do PAICV que reprovou todas as propostas de mudança do regime político, da economia à sociedade civil, que lhe tinham sido apresentadas. O ano 1989, o do desmoronamento do simbólico Muro de Berlim, para ambos os lados, termina com a cimeira dos Cinco na Praia.
Vi um democrata em ação
Para Aristides Maria Pereira e para Cabo Verde, 1990 é um ano charneira. Recebe a visita do papa João Paulo II (25 a 27 de Janeiro) e preside à reunião extraordinária do Conselho Nacional do PAICV, que declara que é chegada a hora da mudança do regime político. Era o dia 19 de Fevereiro. A 26 de Julho, Pedro Pires é eleito SG pelo IV Congresso do PAICV, substituindo Aristides Maria Pereira. Este, convencido de que o tamanho dos Estados conta pouco, encontra-se com George Bush, François Miterrand e De Clerk para facilitar a negociação e credibilizar Cabo Verde. Lidera o processo interno de transição, iniciado formalmente em 19 de Fevereiro de 1990, com elevação e isenção.
Permitam que vos conte um episódio revelador de quem era Aristides Maria Pereira. Aconteceu durante uma reunião semanal da Comissão Política do PAICV de Novembro ou Dezembro de 1990. Ele tinha sido designado o candidato do PAICV a Presidente da República. Eu não concordava e disse-o numa reunião interna. Ele respondeu mais ou menos assim: o camarada Corsino Tolentino tem razão na perspetiva de que um bom candidato é ganhador das eleições. Mas estamos a transformar o regime político de Cabo Verde, sendo um bom candidato mais do que isso, aquele que participa, podendo ganhar ou perder. Diga-me se não tenho o direito de concorrer? Assim sendo, respondi que era muito provavelmente o melhor candidato de uma parte significativa da população de Cabo Verde. O diálogo aumentou o meu respeito por ele e por todos aqueles que o acompanharam, nomeadamente na sua última campanha eleitoral. O terceiro mandato finalizou com a vitória do MpD nas eleições de 13 de Janeiro de 1991 e a posse do Primeiro-ministro, Dr. Carlos Veiga. Tinha 68 anos quando deixou a política.
A Vida Privada de Aristides Maria Pereira
No lado oficial da vida recebeu líderes mundiais e visitou várias personalidades. Entre essas, ele tinha as suas preferências pessoais, que fomos registando ao sabor das oportunidades. Tito da Jugoslávia, Leopoldo Sedar Senghor, Mário Soares, Sandro Pertini, George Bush (pai) e Simone Veil, a resistente anti-nazista, que o visitou na Praia, eram amigos. Vista esta nota, voltemos ao Ensaio. Entre o fim das obrigações do estadista e 2011, passaram 20 anos. Já como cidadão comum, mas invocando as memórias de Chefe de Estado, surgiu a maior polémica da vida de Aristides Maria Pereira. Ele teria declarado a José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso e escritor, conforme foi reportado por este: “hoje em dia, é minha forte convicção que a aspiração do povo de Cabo Verde não era a independência, mas a autonomia”. Para mim, o que é realmente importante é avaliar os fatos e não é julgar pessoas, até porque este julgamento é uma tarefa impossível, considerando, por um lado, o desaparecimento de um dos protagonistas e, por outro, porque o alegado diálogo não teve testemunha. O antigo Chefe de Estado podia, e até teve a obrigação de admitir todas as hipóteses, neste caso, a de avaliar entre outras, a possibilidade de um Cabo Verde autónomo. Até hoje, ninguém conseguiu equacionar o problema da sustentabilidade económica de Cabo Verde. Para a análise, portanto, todos os argumentos são bons. No caso de um Chefe de Estado, não devem é ficar pela simples expressão de estados de alma. Lamentável mal-entendido, só isso. Apesar de tudo, quem não se surpreendeu com a leveza de Aristides Maria Pereira ao volante do seu pequeno automóvel ou a fazer compras nas lojas da capital? Confesso que tenho saudades da sua humildade e da sua visão de Cabo Verde e do mundo. Foi comovente a sua forma de assumir a derrota eleitoral e acredito que foi sincero nas felicitações que apresentou ao vencedor António Mascarenhas Monteiro. Em 2003, lança o livro Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países, organizado com a ajuda de Leopoldo Amado. A partir de então começa a elaborar penosamente Nossa História, Minha Vida. Aos 88 anos, morreu em Coimbra, Portugal, no dia 22 de Setembro de 2011.
O Primeiro Presidente da República de Cabo Verde desejou ter a sua última morada na povoação de Fundo das Figueiras, terra onde nasceu. A família e o governo cumpriram. Proponho todavia uma ação de resgate do reconhecimento do papel que Aristides Maria Pereira teve na fundação e consolidação do Estado de Cabo Verde. Cidadãos comuns ou universitários têm em Dona Maria das Neves, Porfírio Pereira Tavares e Aristides Maria Pereira um campo fértil de inspiração, investigação e escrita de biografias.
Corsino Tolentino
Praia, Agosto de 2017
Referências bibliográficas:
[1] Marr, Andrew, História do Mundo, Texto Editores (686 páginas), Alfragide, Portugal.
2 Ortega y Gasset, José, El hombre y sus circunstâncias (internet).
3 Breve Ensaio Biográfico de Aristides Maria Pereira deve a informação fundamental à Nossa História, Minha Vida, de Aristides Maria Pereira, livro concebido e realizado por José Vicente Lopes (pp. 481-488).
4www:citador.pt/textos-o-homem-de-génio-i-Fernando-Pessoa.
5 Pereira, Aristides, O Meu Testemunho: uma luta, um partido, dois países, Notícias Editorial, Lusomundo, 974 páginas.
6 Pinto, José Filipe, Do Império Colonial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Continuidades e Descontinuidades (2005), Instituto Diplomático, Lisboa, 744 páginas.
7 Dos Santos, Daniel, Amílcar Cabral: Um Outro Olhar (2014), Chiado Editora, Lisboa.
8 Ferro, Marc, O Ressentimento na História (2009).
Marca indelevelmente a História da Guiné e Cabo Verde e dos seus povos na construção de uma Identidade Nacional através, de uma gloriosa Luta de Libertação e lançamento dos alicerces dos dois Estados.
Aristides Pereira, pela vida, exemplo e valores, merece ser estudado e divulgado no seio da juventude africana e mundial
Bom artigo.Gostei.
Após uma leitura mais detalhada deste magnifico texto biográfico sobre Aristides Pereira de que gostei imenso, penso que já é tempo de se evidenciar/reconhecer de forma mais justa outros protagonistas na nossa história política que não Amílcar Cabral, Julgo que Aristides Pereira (e o seu legado) e outras personalidades(mulheres e homens) merecem,também, ser desbravados da forma inteligente e elucidativo como o Investigador o faz.O Pro-África sente-se honrado em publicar este documento sobremaneira credível para a compreensão da nossa história política recente…
Bem haja os seus contributos para que a nova geração conheça de forma objetiva e científica os legados dos principais protagonistas e os respectivos contextos da nossa história política recente.
Boa Hermes
Meu Poeta
Ah, se eu pudesse beber anis.
Quem sabe pudesse parar estes
Relâmpagos em terra, e na minha cabeça
Amenizasse esta tristeza
Que me faz delirar como porcos em delírios
E gostaria de abraçar Jorge Carlos Fonseca.
Oh, senhor Presidente e meupoeta dai me um abraço.
É porque sou flor da vossa revolução
E não pude dar um abraço ao meu gigante
Aristides Maria Pereira.
Sim era nas estradas de Prainha
Quando fazia o meu jogging matinal,
A coragem faltou-me, e não pude abraça-lo, que pena.
Sempre que encontrasse meu poeta no farol
Aí sim, amenizava aquela tristeza
De não ter pedido um abraço ao meu gigante
Aristides Maria Pereira.
Paulo Furtado Brito
Infelizmente,o que prezenciamos na nossa vivência diiária a ingorancia de muito boa gente que finge não saber nada acerca Do grande Homem qúe é o nosso Aritides Maria Preira..Para estes democratas que não quer tenta apagrar na nossa história grandes figuras de nossa luta de libertação-merecem ser chmados de “BESTAa”,na linguagem do grande Fernando Pessoa